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A voz e a vez do morro

A voz e a vez do morro

Autores - Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2015 - Por: Narcimária Correia do Patrocínio Luz

É ao sabor do ritmo e cadência do samba adornado pela polirritmia percussiva da orquestra africano-brasileira que destaco aqui, de modo muito especial, a “Voz do Morro”, composição de Zé Kéti (1952). Outros sambas importantes que nos motivam a pensar o Brasil: “O Morro não tem Vez” (1963) de Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim; “Opinião” (1964) de Zé Keti;“Alvorada” (1968) de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho.

São sambas que se tornaram legendas na história do Brasil por várias razões:  a primeira por contar os modos de insurgência das populações negras e sua competência para fundar territorialidades que recusam o recalque à sua alteridade civilizatória; asegunda pela poesia que nos emociona e nos leva a dramatizar por meio da dança e da ginga as situações que carregam a pulsão de sociabilidade africano-brasileira.

O samba apresenta narrativas, desdobramentos das células comunitárias, responsáveis pela origem das cidades, a arquitetura compondo em seu traçado urbano elos de ancestralidade, cosmogonias, hierarquias e instituições.

“Alvorada lá no morro/ Que beleza/ Ninguém chora/ Não há tristeza/ Ninguém sente dissabor/ O sol colorindo é tão lindo/ É tão lindo/ E a natureza sorrindo/ Tingindo, tingindo” (Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Belo).

É preciso chamar a atenção do leitor para a necessidade de transcender o discurso geográfico, mensurável e estático que, esquadrinhando os espaços, diz o que é, e deve ser o “morro”. O morro aqui é uma metáfora! Em cena estão todas as territorialidades no Brasil imantadas pelo patrimônio de valores e linguagens africano-brasileiras.

“Podem me prender/ Podem me bater/ Podem, até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro/ Eu não saio, não.” (Zé Kéti)

De um lado a geografia e o traçado urbano eminentemente africano-brasileiro com suas instituições e hierarquias; de outro o asfalto (parafraseando Marco Aurélio Luz) com a sua a geografia civilizatória racista e seu traçado urbano asséptico produtivista, voltado para a acumulação de capital.

“A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais/Que os olhos não conseguem perceber, e as mãos não ousam tocar, que os pés recusam pisar/Sei lá não sei, sei lá não sei não/ Não sei se toda beleza de que lhes falo sai tão-somente do meu coração/Em Mangueira a poesia num sobe e desce constante, anda descalço ensinando um modo novo de a gente viver, de cantar, de sonhar, de vencer/ Sei lá não sei, sei lá não sei não, a Mangueira é tão grande que nem tem explicação.” (Hermínio Belo de Carvalho e Paulinho da Viola).

Todos os sambas que destaquei falam das tensões e conflitos entre a singularidade africano-brasileira e as políticas genocidas e de abandono que desencadeiam uma dinâmica da violência que vem ceifando a vida de milhares de homens, mulheres, crianças e jovens.

“Escravo no mundo em que estou/ Escravo no reino em que sou/ Mas acorrentado ninguém pode amar/ Mas acorrentado ninguém pode amar/ Chora, mas chora rindo / Porque é valente/ E nunca se deixa quebrar/ Ah, ama, o morro ama/ Um amor aflito, um amor bonito/ Que pede outra história.” ( Carlos Lyra)
Apesar de todas essas agressões cotidianas, não esqueçamos a imponência e altivez do povo negro que não abre mão do direito de ser e viver suas instituições como as “pequenas Áfricas” no Rio de Janeiro, como se referiu Heitor dos Prazeres às comunalidades sob a liderança feminina das baianas como Tia Ciata.

“Eu sou o samba/ A voz do morro sou eu mesmo sim senhor/ Quero mostrar ao mundo que tenho valor/ Eu sou o rei do terreiro/ Eu sou o samba/ Sou eu quem levo a alegria/ Para milhões de corações brasileiros/ Salve o samba, queremos samba/ Quem está pedindo é a voz do povo de um país/ Salve o samba, queremos samba/ Essa melodia de um Brasil feliz.” (Zé Kéti)

O que isso significa? A institucionalização de políticas públicas que contemplem direitos coletivos capazes de estabelecer espaços institucionais de combate ao racismo e suas engrenagens ideológicas, que tendem a tragar a vida e submeter as populações negras a situações marcadas por muita dor e humilhação.

Então, cantemos a “voz do morro” num coro uníssono, fazendo repercutir entre gerações o respeito aos valores das comunalidades africano brasileiras e o direito de ser e viver suas instituições.
“O morro não tem vez/ E o que ele fez já foi demais/ Mas olhem bem vocês/ Quando derem vez ao morro/ Toda a cidade vai cantar/ Samba pede passagem/ Morro quer se mostrar/ Abram alas pro morro/ Tamborim vai falar/ É um, é dois, é três/ É cem, é mil!”(Vinícius de Moraes e Antônio Carlos Jobim)

 

Narcimária Correia do Patrocínio Luz é Doutora em Educação e Coordenadora do Programa Descolonização e Educação-PRODESE

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